segunda-feira, 12 de março de 2018

Notas sobre A Grande Onda - 24

 
 



 
         23.
 
         A obra de Katsushika Hokusai e, de um modo geral, as xilogravuras do «mundo flutuante» são admiradas, em larga medida, pelo distanciamento que denotam face à realidade.
 
         Aliás, a fuga à realidade, a busca hedonista do prazer efémero e do puro gozo do momento presente são características desde sempre associadas ao paisagismo do ukiyo-re, seguindo o espírito presente num célebre trecho escrito em 1661-1665 por Asay Ryōi, no prefácio da sua obra Contos do Mundo Flutuante (Ukiyo monogatari):
 
         «Viver unicamente o momento presente, entregando-se de corpo e alma à contemplação da lua, da neve e das flores de cerejeira e das folhas do ácer, cantar canções, beber vinho, divertindo-nos simplesmente flutuando, sem nos deixarmos abater pela pobreza, nem permitindo que transpareça no rosto, mas flutuar à deriva como uma cabaça na corrente de um rio: isto é o que chamamos ukiyo-re»
 
(cf. Richard Lane, Images from the Floating World. The Japanese Print. Including an Illustrated Dictionary of Ukyio-re, Alpine Fine Arts Collection, 1978, p. II, apud Ana Anjos Mântua, «Ukyio-re, imagens de um mundo flutuante», in Imagens e um Mundo Flutuante. Estampas, livros e álbuns da colecção Paul Ugo Thiran, Lisboa, Casa-Museu Anastácio Gonçalves–Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2014, p. 14).

 
A figuração da Natureza nos mestres do ukiyo-re surpreende, com frequência, pelo seu elevado grau de abstraccionismo, sendo porventura essa a razão pela qual as gravuras do «mundo flutuante» suscitaram a admiração dos artistas europeus como Van Gogh, Whistler ou Monet, que, a partir de meados e finais século XIX, procuraram romper com os cânones estéticos e figurativos convencionais. Não por acaso, Van Gogh (que possuía, juntamente com o seu irmão, mais de quarenta xilogravuras de Hiroshige, algumas das quais chegou a copiar como esboços para os seus trabalhos) exprimiu a sua enorme admiração pelas obras vindas do Japão, escrevendo numa carta de 1888: «invejo nos japoneses a sua incrível clareza. Em momento algum são entediantes e nunca se tem a impressão de que trabalharam à pressa. É tão simples como respirar: com um par de traços firmes desenham uma figura com uma ligeireza tal que isso parece tão simples como apertar os botões de um colete».
 
A estilização de certas formas da Natureza é patente em diversas imagens de Hiroshige ou de Hokusai, podendo apontar-se, quanto ao primeiro, e a título de mero exemplo, o modo como a chuva é representada em A Ravina de Yamabushi na Província de Mimasaka, xilogravura de 1835 inserida na série Vistas Famosas de Mais de 60 Províncias. Ou poderá também referir-se as rochas em Okute, a estação 48 da série 53 Estações da Rota Tōkaidō, de 1833-1834 (existente na colecção da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, tendo aí sido exibida em 2009; cf. também este interessante site).
 
 
Utagawa Hiroshige,  A Ravina de Yambushi na Província de Mimasaka, 1835
 
 

Utagawa Hiroshige, Okute, 1833-1834 

 
 
Em Hokusai, de igual modo, existem inúmeros exemplos de figurações quase abstractas, como sucede, designadamente, na forma como o autor de A Grande Onda representa as águas lacustres ou fluviais. Alguns exemplos do acervo do British Museum:


Museu Britânico, 1906, 1220, 0.577
 
 


Museu Britânico, 1910, 0418, 0.194



    A par deles, poderia mencionar-se a figuração da chuva (e das águas) na Gravura V (Dai godanme) da série Nova Edição das Perspectivas de Chûshingura (Shinpan uki-e Chûshingura), de 1803-1805.

 
Museu Britânico, 1908, 616, 0.165

 

 
Na mesma linha, a figuração arbórea da cascata em Queda de Água no Monte Kurokami em Shimotsuke, da série Viagem pelas Cascatas das Diversas Províncias, produzida circa 1832.
 

Katsushika Hokusai, Queda de Água no Monte Kurokami em Shimotsuke, c. 1832
Metropolitan Museum of Art, JP2924



 
É habitual considerar-se a figuração da onda de Kanagawa como exemplo do abstraccionismo de Hokusai, considerando-se que o autor de A Grande Onda concebeu uma vaga ameaçadora, fantasmagórica, com garras semelhantes aos dos monstros. A onda seria um gigantesco monstro marinho, o que em parte é verdade; e assim tem sido apresentada em milhares de recriações contemporâneas, muitas das quais de cariz popular.
 

Katsuhika Hokusai, A Grande Onda (detalhe)
 
 
 
 
 


 


      Simplesmente, análises recentes da opus magnum de Katsushika Hokusai vieram mostrar que existe um impressionante realismo no modo como a onda é representada na célebre xilogravura inserida na série 36 Vistas do Monte Fuji.
 
Entre essas análises, destaca-se o artigo de Julian H.E. Cartwright e Hisami Nakamura, «What kind of wave is Hokusai’s Great wave off Kanagawa?», Notes and Records of the Royal Society (Londres), vol. 63, nº 2, Junho de 2009, pp. 119-135.
 
Texto do maior interesse para a compreensão de A Grande Onda, dele se refere apenas, por ora, a conclusão de que certo tipo de ondas, que os autores designam por plunging breakers, apresentam com frequência uma rebentação em que a espuma se assemelha a mãos, ou dedos de mãos humanas, tal como Hokusai o fez (cf. a imagem (b), publicada no mencionado estudo de Cartwright e Nakamura).
 
 
 
 
 
Daqui não se pode sustentar, como é evidente, que A Grande Onda constitui uma representação inteiramente fiel da Natureza ou pretende ser um retrato do mar dominado por uma total preocupação de fidedignidade e de realismo. Como também demonstram Julian H.E. Cartwright e Hisami Nakamura no artigo atrás citado, existe, por exemplo, uma distorção do ponto de vista que é feita precisamente para aumentar, de forma «artificial», a dramaticidade da cena.
 
Ainda assim, a plena adesão à realidade da figuração do mar apresentada em A Grande Onda é perturbadora para todos quantos insistem em ver neste trabalho de Hokusai alusões veladas a seres monstruosos ou criaturas imaginárias.
  
 
 
 
 
    
      
 

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